0

Algumas coisas jamais serão as mesma!!!

(texto escrito em 2008)

No domingo passado caprichei no almoço. Arrumei a mesa com as louças que ganhei de casamento, coloquei copos novos e fiz uma macarronada ao molho de atum. Sentamos ao redor da mesa e passamos bons momentos juntos. Eu, meu marido e a filha dele.
Por volta das oito da noite saímos para comer uma pizza e a menos de 100 metros na minha casa tinha um corpo estendido no chão. A rua estava cheia de homens, mulheres e crianças. A sirene vermelha da polícia tingia o pano branco que cobria o corpo do pobre rapaz. A empresa de trânsito também estava presente, só que para tentar controlar a lentidão causada pelos carros que passavam devagarzinho para ver o que estava acontecendo. Todos estavam esperando o Instituto Médico Legal chegar para levar embora o corpo (e a vida) daquele menino.
Muitos que estavam ali, depois que o espetáculo estivesse acabado, retomariam as suas atividades. Mas para a família daquele rapaz, a vida nunca mais será a mesma. Foi assim com a minha.

No dia 31 de Outubro de 2007 eu recebi uma noticia do meu médico dizendo que o que eu tinha no intestino não era câncer e sim uma doença simples que carrego comigo desde que nasci. Ele disse também que se eu tomasse alguns remédios e parasse de ingerir lactose, em alguns dias, eu pararia de perder peso. No dia primeiro de novembro de 2007, às nove horas da manhã, recebi uma ligação do meu pai preocupado comigo. Eu estava no trabalho.
 - E ai Mika? Como você está?
Respondi de uma maneira brincalhona
- Estou ótima paizinho, depois que eu comecei a tomar esse remédio deixei de ir 10 vezes ao banheiro, estou indo apenas sete.
Meu pai riu do outro lado da linha e disse...
- Então estamos indo muito bem, não?
Eu dei risada com o otimismo dele e prossegui.
- É papi...estamos...Pelo menos, não é câncer de intestino!
- Câncer de intestino? Nossa filha você achava que era câncer e nem dividiu essa angústia comigo?
- Ai pai... Vou aterrorizar pra que? Era coisa da minha cabeça...
Ele ficou sério do outro lado.
- Sabe filha, eu queria às vezes te colocar no meu colo e cuidar de você.
Ficamos por um segundo em silêncio quando ele mesmo o quebrou.
 - Você acha que seria possível fazermos uma viagem apenas nós cinco? (eu, minha mãe, minha irmã mais velha e minha irmã mais nova).
E sem me dar a chance de responder, ele mesmo respondeu.
- Não dá, né.? Agora vocês já estão todas casadas... é muito difícil, né?
Senti pela sua voz o desejo gigante em voltarmos a ser criança. E eu respondi entusiasmada para quebrar logo com aquela angustia que estava no peito dele
- Claro PAI ! Por mim tudo bem! Vamos sim! Vamos marcar! Precisa ver com as meninas...
Nisso uma pessoa passou na minha frente e tentou falar comigo. Fiz gesto para esperar e voltei a falar com o meu pai:
- Pai...preciso desligar, está corrido hoje!
- Ok...depois agente se fala. Que bom saber que você está melhorando.
- Te amo muito, tá?
- Eu também filha.
Voltei para o meu trabalho. Quando eram onze horas da manhã a minha vó (mãe do meu pai) me ligou:
- Oi Mi...seu pai me falou que você está melhor...
- Estou sim vó... fique tranqüila
A família do meu pai é assim... Tão unida que em menos de um minuto todos já estão sabendo daquilo que para você é um constrangimento. Desliguei o telefone, dei risada sozinha e pensei “Vou ligar para o meu pai, pois se não, daqui a pouco, a família inteira saberá quantas vezes eu estou indo ao banheiro”. Mas abri o meu e-mail e acabei deixando aquela ligação para mais tarde.
No final do dia, às seis e quarenta da noite, eu estava no carro, junto com o meu marido e um amigo nosso, todos indo para a faculdade. Peguei o meu celular para fazer aquela ligação que eu não tinha conseguido fazer durante o dia inteiro. Coloquei em “Papi”, como ele está registrado na agenda do aparelho. Coloquei o meu dedão na tecla verde e por alguns instantes fiquei olhando para aquele objeto como se estivesse completamente hipnotizada. Como eu já tinha contado a história para o meu marido, ele olhou para mim e me disse:
- Que foi Mi? Você vai ou não vai ligar para o seu pai?
E eu, não sei porque, apertei o botão vermelho e disse:
- Depois eu ligo.
Às sete horas da noite, o meu telefone celular tocou. Era o meu tio, irmão do meu pai. Atendi entusiasmada, mas aquele sorriso desmoronou rapidamente assim que eu ouvi sua voz de choro.
- Mi... - um silêncio profundo - seu pai, Mi... - ele tentava conter o choro. Ele tentava falar e não conseguia.
- O quê, Lelo? Fala! O que foi?
- Seu pai Mi... Perdemos seu pai...

As minhas pernas ficaram moles, eu não consegui segurar a minha bolsa e um grito incontrolável saiu da minha garganta... Eu só consegui gritar... Não...Não...Não... Eu queria tirar, pela boca, aquela facada que estava no meu peito.
Meu marido pegou o meu telefone, tentou entender o que estava acontecendo, entrou correndo no carro e dirigiu muito rápido até a casa da minha mãe. Aquele caminho nunca foi tão longo. Eu não conseguia enxergar, eu não conseguia entender, eu queria correr... Correr mais rápido... E por um ato de loucura, tentei abrir a porta do carro para sair correndo como se isso fosse possível. Eu queria estar lá, ao lado da minha mãe e de minhas irmãs em menos de um segundo.
Grito, choro, calmante e desespero... Era esse o clima dentro da casa que foi construída com tanto amor pelos meus pais. A cada instante era algum parente ou amigo que chegava para tentar consolar uma dor inconsolável. A cada minuto a minha cabeça rodava e tentava entender o que estava acontecendo. Eu nunca vi a minha mãe daquele jeito.

Tínhamos que decidir.

Qual cemitério? Flamboyant? Saudades? Hortência? Que roupa vamos colocar nele? Roupa? Dentre todas aquelas roupas que ele usou durantes seus 51 anos de vida, tínhamos que escolher a última peça que ele iria usar? Quem se importa?  
Tive que pegar na mão a aliança do meu pai suja de sangue. Tive que conferir dados pessoais dele em um documento que dizia que estava morto e que nunca mais ia voltar. Nunca mais ia me ligar. Nunca mais ele ia poder me colocar no seu colo e nunca mais iríamos poder fazer aquela viagem apenas nós cinco. Aliás, não éramos mais cinco.

Enquanto esse mundo desmoronava sobre as nossas cabeças, possivelmente homens, mulheres e crianças estavam aglomerados atrás do cordão de isolamento que a polícia colocou no local do acidente do meu pai. Deveria ter milhares de pessoas tentando entender o que se passava ali.
Jornais de todos os tipos e lugares anunciavam a morte do publicitário de 51 anos que morrera com a queda de uma árvore, que foi arrancada por um vento de 113 km/h, enquanto dirigia de volta para casa.
Para aqueles curiosos era mais um acidente, mais uma morte, mais um show. Para os jornais era apenas mais uma notícia. Para nós era o início de uma vida reconstruída sobre o terreno de uma morte inesquecível e insuperável.

Quando vi aquele rapaz deitado no chão, não conseguia parar de pensar que no mesmo domingo que eu preparei um almoço delicioso e comi junto com a minha família ao redor da mesa, a mãe ou a esposa daquele garoto nunca mais vai esquecer desse domingo ou dessa ultima refeição que fizeram juntos.
A cada dia milhares de pessoas morrem, milhares de famílias ficam desconsoladas e milhares de pessoas aleatórias continuam na trajetória da sua vida, sem saber ao certo, quando será a sua vez de derramar um mar de lágrimas enquanto o outro está ali parado simplesmente olhando mais um corpo estendido no chão.
Para quem passa por isso... Algumas coisas jamais serão as mesmas.