No
domingo passado caprichei no almoço. Arrumei a mesa com as louças que
ganhei de casamento, coloquei copos novos e fiz uma macarronada ao molho
de atum. Sentamos ao redor da mesa e passamos bons momentos juntos. Eu,
meu marido e a filha dele.
Por
volta das oito da noite saímos para comer uma pizza e a menos de 100
metros na minha casa tinha um corpo estendido no chão. A rua estava
cheia de homens, mulheres e crianças. A sirene vermelha da polícia
tingia o pano branco que cobria o corpo do pobre rapaz. A empresa de
trânsito também estava presente, só que para tentar controlar a lentidão
causada pelos carros que passavam devagarzinho para ver o que estava
acontecendo. Todos estavam esperando o Instituto Médico Legal chegar
para levar embora o corpo (e a vida) daquele menino.
Muitos
que estavam ali, depois que o espetáculo estivesse acabado, retomariam
as suas atividades. Mas para a família daquele rapaz, a vida nunca mais
será a mesma. Foi assim com a minha.
No
dia 31 de Outubro de 2007 eu recebi uma noticia do meu médico dizendo
que o que eu tinha no intestino não era câncer e sim uma doença simples
que carrego comigo desde que nasci. Ele disse também que se eu tomasse
alguns remédios e parasse de ingerir lactose, em alguns dias, eu pararia
de perder peso. No dia primeiro de novembro de 2007, às nove horas da
manhã, recebi uma ligação do meu pai preocupado comigo. Eu estava no
trabalho.
- E ai Mika? Como você está?
Respondi de uma maneira brincalhona
- Estou ótima paizinho, depois que eu comecei a tomar esse remédio deixei de ir 10 vezes ao banheiro, estou indo apenas sete.
Meu pai riu do outro lado da linha e disse...
- Então estamos indo muito bem, não?
Eu dei risada com o otimismo dele e prossegui.
- É papi...estamos...Pelo menos, não é câncer de intestino!
- Câncer de intestino? Nossa filha você achava que era câncer e nem dividiu essa angústia comigo?
- Ai pai... Vou aterrorizar pra que? Era coisa da minha cabeça...
Ele ficou sério do outro lado.
- Sabe filha, eu queria às vezes te colocar no meu colo e cuidar de você.
Ficamos por um segundo em silêncio quando ele mesmo o quebrou.
-
Você acha que seria possível fazermos uma viagem apenas nós cinco? (eu,
minha mãe, minha irmã mais velha e minha irmã mais nova).
E sem me dar a chance de responder, ele mesmo respondeu.
- Não dá, né.? Agora vocês já estão todas casadas... é muito difícil, né?
Senti
pela sua voz o desejo gigante em voltarmos a ser criança. E eu respondi
entusiasmada para quebrar logo com aquela angustia que estava no peito
dele
- Claro PAI ! Por mim tudo bem! Vamos sim! Vamos marcar! Precisa ver com as meninas...
Nisso uma pessoa passou na minha frente e tentou falar comigo. Fiz gesto para esperar e voltei a falar com o meu pai:
- Pai...preciso desligar, está corrido hoje!
- Ok...depois agente se fala. Que bom saber que você está melhorando.
- Te amo muito, tá?
- Eu também filha.
Voltei para o meu trabalho. Quando eram onze horas da manhã a minha vó (mãe do meu pai) me ligou:
- Oi Mi...seu pai me falou que você está melhor...
- Estou sim vó... fique tranqüila
A
família do meu pai é assim... Tão unida que em menos de um minuto todos
já estão sabendo daquilo que para você é um constrangimento. Desliguei o
telefone, dei risada sozinha e pensei “Vou ligar para o meu pai, pois
se não, daqui a pouco, a família inteira saberá quantas vezes eu estou
indo ao banheiro”. Mas abri o meu e-mail e acabei deixando aquela
ligação para mais tarde.
No
final do dia, às seis e quarenta da noite, eu estava no carro, junto
com o meu marido e um amigo nosso, todos indo para a faculdade. Peguei o
meu celular para fazer aquela ligação que eu não tinha conseguido fazer
durante o dia inteiro. Coloquei em “Papi”, como ele está registrado na
agenda do aparelho. Coloquei o meu dedão na tecla verde e por alguns
instantes fiquei olhando para aquele objeto como se estivesse
completamente hipnotizada. Como eu já tinha contado a história para o
meu marido, ele olhou para mim e me disse:
- Que foi Mi? Você vai ou não vai ligar para o seu pai?
E eu, não sei porque, apertei o botão vermelho e disse:
- Depois eu ligo.
Às
sete horas da noite, o meu telefone celular tocou. Era o meu tio, irmão
do meu pai. Atendi entusiasmada, mas aquele sorriso desmoronou
rapidamente assim que eu ouvi sua voz de choro.
- Mi... - um silêncio profundo - seu pai, Mi... - ele tentava conter o choro. Ele tentava falar e não conseguia.
- O quê, Lelo? Fala! O que foi?
- Seu pai Mi... Perdemos seu pai...
As
minhas pernas ficaram moles, eu não consegui segurar a minha bolsa e um
grito incontrolável saiu da minha garganta... Eu só consegui gritar...
Não...Não...Não... Eu queria tirar, pela boca, aquela facada que estava
no meu peito.
Meu
marido pegou o meu telefone, tentou entender o que estava acontecendo,
entrou correndo no carro e dirigiu muito rápido até a casa da minha mãe.
Aquele caminho nunca foi tão longo. Eu não conseguia enxergar, eu não
conseguia entender, eu queria correr... Correr mais rápido... E por um
ato de loucura, tentei abrir a porta do carro para sair correndo como se
isso fosse possível. Eu queria estar lá, ao lado da minha mãe e de
minhas irmãs em menos de um segundo.
Grito,
choro, calmante e desespero... Era esse o clima dentro da casa que foi
construída com tanto amor pelos meus pais. A cada instante era algum
parente ou amigo que chegava para tentar consolar uma dor inconsolável. A
cada minuto a minha cabeça rodava e tentava entender o que estava
acontecendo. Eu nunca vi a minha mãe daquele jeito.
Tínhamos que decidir.
Qual
cemitério? Flamboyant? Saudades? Hortência? Que roupa vamos colocar
nele? Roupa? Dentre todas aquelas roupas que ele usou durantes seus 51
anos de vida, tínhamos que escolher a última peça que ele iria usar?
Quem se importa?
Tive
que pegar na mão a aliança do meu pai suja de sangue. Tive que conferir
dados pessoais dele em um documento que dizia que estava morto e que
nunca mais ia voltar. Nunca mais ia me ligar. Nunca mais ele ia poder me
colocar no seu colo e nunca mais iríamos poder fazer aquela viagem
apenas nós cinco. Aliás, não éramos mais cinco.
Enquanto
esse mundo desmoronava sobre as nossas cabeças, possivelmente homens,
mulheres e crianças estavam aglomerados atrás do cordão de isolamento
que a polícia colocou no local do acidente do meu pai. Deveria ter
milhares de pessoas tentando entender o que se passava ali.
Jornais
de todos os tipos e lugares anunciavam a morte do publicitário de 51
anos que morrera com a queda de uma árvore, que foi arrancada por um
vento de 113 km/h, enquanto dirigia de volta para casa.
Para
aqueles curiosos era mais um acidente, mais uma morte, mais um show.
Para os jornais era apenas mais uma notícia. Para nós era o início de
uma vida reconstruída sobre o terreno de uma morte inesquecível e
insuperável.
Quando
vi aquele rapaz deitado no chão, não conseguia parar de pensar que no
mesmo domingo que eu preparei um almoço delicioso e comi junto com a
minha família ao redor da mesa, a mãe ou a esposa daquele garoto nunca
mais vai esquecer desse domingo ou dessa ultima refeição que fizeram
juntos.
A
cada dia milhares de pessoas morrem, milhares de famílias ficam
desconsoladas e milhares de pessoas aleatórias continuam na trajetória
da sua vida, sem saber ao certo, quando será a sua vez de derramar um
mar de lágrimas enquanto o outro está ali parado simplesmente olhando
mais um corpo estendido no chão.
Para quem passa por isso... Algumas coisas jamais serão as mesmas.